Neste sábado acompanhei uma reunião entre uma comunidade Kaiowá, advogados representantes dos donos das terras e Funai. O caso é tais terras tinham sido compradas há muitos anos por uma pessoa de outra cidade/estado e tudo ficou de herança para os filhos. Terras com mata, rio, etc. Essa comunidade Kaiowa habita esse território há mais de 50 anos (ou muito mais!) é o que se pôde ter de registro documental, mas "ninguém" se dava conta disso, porque eles viviam dentro da mata. Há alguns anos parte do terreno foi vendida para Caixa Econômica Federal para construção de casas populares e então em algum momento a obra foi embargada pelo MP, pois graças a um estudo que estava documentado e vinha sendo feito há alguns anos, sobre a presença daquela comunidade Kaiowa naquele espaço. Há mais ou menos 4 anos os donos herdeiros da terra vem tentando negociar com essa comunidade como dividir a terra. Isso é um caso muito diferente do que acontece geralmente. E a reunião desse sábado era pra mais uma vez tentar chegar num acordo. O espaço que esses Kaiowás vivem abrange 13 terras particulares. Sendo que tal acordo estava sendo feito com apenas 3 deles (irmãos).
Chegamos cedo, 7h. A liderança da comunidade já estava lá e aos poucos mais e mais integrantes (com muitas crianças e jovens) iam chegando com suas cadeiras. Havia muitos cachorros também.
Fui acompanhando a professora de guarani, que fazia a mediação/tradução tanto linguística quanto cultural entre os Kaiowas e os advogados.
Em um momento uma das mulheres Kaiowas disse: nós queremos é o direito da terra. Não o nosso direito apenas de ter a terra, mas principalmente o direito que a terra tem, ela tem o direito de permanecer aqui, como está com sua mata, com nós aqui, porque nós somos feitos de terra. Depois que a gente morre a gente vira terra novamente.
Outra mulher disse: eles querem que a gente fique só dentro da mata, mas a gente não pode morar no meio do mato, a gente tem que morar num lugar limpo, porque no mato moram outros seres. Nós não somos outros seres. (isso tem a ver com os limites de terra que os herdeiros estavam oferecendo).
Dentro da oferta feita aos kaiowas estava uma quantidade x de hectares + benefícios (construção de casa para cada família). No entanto essa não é a cultura deles. Eles não querem viver numa vila apertada. Ainda mais que esses benefícios todos geram custo: conta de luz, conta de água, etc... E quem vai pagar isso depois? Então a liderança uma hora disse: a gente faz acordo se a divisa passar por tal lugar e se pra isso vocês não quiserem construir casa pra gente, tudo bem. E foi perguntando pros seus: "Você, aqui, já passou fome alguma vez aqui?" "Já te faltou alguma coisa, aqui onde vivemos em comunidade"? "Então, a gente não quer suas casas".
Outra coisa muito sábia que a liderança disse ao advogado foi: nessa parte aqui, que é de vocês (da construtora) a gente não quer que vocês construam prédios, casas porque é muito perto da gente: se vocês construírem aqui nesta parte, vai ter gente morando aí que tem armas, isso vai trazer lixo pra gente, doença, além do preconceito. Essa fala do chefe é muito importante porque as pessoas que vão morar ali, de outra cultura, ele sabe que não gostam deles. E essa será a vizinhança. Por fim ele disse: ao invés de casas, aqui, nesta parte, vocês devem construir uma escola e um posto de saúde.
No momento final do encontro, quando estavam escrevendo a ata da reunião, a liderança estava desenhando o mapa das terras no chão, todas as pessoas em volta, ali, vendo aqueles riscos na terra feitos com um pedaço de pau, é que todxs estavam reunidos.
SR. R. (cerca de 70 anos)
Em um momento conversei um tempo com um Kaiowa mais velho, que mora numa outra aldeia mas que estava ali acompanhando, pois conhecia a todxs e também porque ele havia trabalhado para um dos donos daquelas terras há muitos anos. Sr. R. contou que quando tinha dois meses de idade foi doado pra um orfanato, ele todxs irmãxs. Sua mãe faleceu. Seu pai foi viver com outra mulher. Aos 7 anos de idade um fazendeiro da região foi ao orfanato e pegou 4 crianças, como disse Sr R.: 2 negros, 1 louro e ele, índio. Todos crianças. Os negros foram levados pra cuidar do chiqueiro. O louro pra cuidar dos bezerros e ele, índio, pra limpar o terreiro. Sr. R disse que apanhou muito desse fazendeiro. Uma vez, a esposa do fazendeiro disse que R. não cuidaria do terreiro mas que a ajudaria a cuidar da filha bebê. Então ela tirou R. do terreiro e levou pra casa. Mas era dia dele limpar todo o terreiro. Quando o marido voltou e viu o terreiro sujo, bateu nele. Ao tentar explicar, o fazendeiro disse: no meu terreiro quem canta não é galinha, é o galo. R. me disse que resolveu fugir. E a noite saiu sem nem saber pra onde iria, e uma cachorrinha da fazenda o acompanhou. Foram 7 dias e 7 noites dormindo na estrada e comendo apenas araçá, uma fruta. Disse que durante o percurso, chegou num lugar que tinha umas casinhas, várias, e tentou chamar alguém para ajudá-lo, ficava em frente batendo palma pra ver se alguém vinha. Ele não sabia o que era um cemitério. Ninguém respondeu e ele seguiu o caminho.
Depois que tudo foi feito, ata escrita, lida em português e em guarani e todos demais se dispersaram a liderança nos levou para andar pelo pequeno espaço de mata da terra.